quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Famigerado Guimarães Rosa!

Mineiro de Cordisburgo. Cidade tão pequenina que os próprios mineiros dizem que se você engatar uma terceira marcha no seu carro, você sai da cidade! E ainda sim, tão pequenina, abrigou João Guimarães Rosa. Médico de formação, Rosa foi mais que um escritor, foi um gênio na arte de brincar com as palavras.

Ao contrário de Machado de Assis, Guimarães Rosa pertence ao século XX e ganhou status de grande autor, na década de 40 quando publica seu primeiro livro: Sagarana. A partir daí, Rosa inicia a sua trajetória pela Literatura e, claro, pelo Grande Sertão: Veredas (1956). E é no sertão mineiro que constrói seu universo literário, e nos encanta, narrando em contos e no seu único romance, a luta da palavra, a magia da palavra, o poder da palavra! E quando se fala de palavra e de Rosa, surge uma das maiores dificuldades de se lê-lo: os neologismos, as palavras arcaicas, que renascem para comporem suas personagens e as suas histórias. Apesar disso, é possível ler Guimarães Rosa, pois a recompensa é extraordinária e altura do desafio que é percorrer seu sertão!

Comecemos então, por um dos contos que mais gosto e que me serviu de porta para adentrar no universo de Rosa: “Famigerado”. Primeiro texto do livro Primeiras estórias, narrado em primeira pessoa, por um médico da região do são-francisco, este nos conta que “parou-me à porta a tropel”, um grupo de jagunços, liderados por Damázio, temido e conhecido jagunço. Sua missão que não era doença ou “nem vindo à receita ou consulta” era mais simples e como diz o narrador “quem pode esperar coisa tão sem pés nem cabeça?”, ou seja, era saber o significado de uma palavra.
“Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é: fasmisgerado... faz-me-gerado... falmisgeraldo... familhasgerado...?
Disse, de golpe, trazia entre dentes aquela frase. Soara com riso seco. Mas, o gesto, que se seguiu, imperava-se de toda a rudez primitiva, de sua presença dilatada. Detinha minha resposta, não queria que eu a desse de imediato. E já aí outro susto vertiginoso suspendia-me: alguém podia ter feito intriga, invencionice de que aqui ele se famanasse, vindo para exigir-me, rosto a rosto, o fatal, a vexatória satisfação?
“Saiba vosmecê que saí ind’hoje da Serra, que vim, sem parar, essas seis léguas, expresso direito pro mor de lhe preguntar a pregunta, pelo claro...”
(Textos Selecionados, pág. 103-4).


No trecho acima, sintetiza perfeitamente o que disse no inicio desta postagem: o poder da palavra! E o seu mistério! Determinado a saber o significado de uma palavra jamais ouvida, o jagunço Damázio percorre dias para saber do que fora chamado pelo “moço do Governo, rapaz meio estrondoso...”. Mas o que significa, afinal, famigerado?

Segundo o narrador, tal palavra é “célebre”, “notório”, “notável”. Porém, para aquele sertanejo o mistério continua. “Pois... e o que é que é, em fala de pobre, linguagem de em dia-de-semana?” (Idem, pág. 105). Nessa frase maravilhosa, Guimarães Rosa resumi a idéia da Literatura, ao meu ver: a palavra pode e transforma o simples, o comum, o dia-de-semana em Arte, tornando-se eterna e imortal. E mais do que isso, Rosa ao brincar com o som de famigerado, ou ao criar “Cabismeditado” – neologismo bárbaro –, o autor mostra que a palavra escrita é sua matéria prima!

E realmente ela é a sua, como a minha também. Porém, minha consciência sobre isso, só se revelou após a leitura deste conto. Além do mais, foi a partir deste texto que percebi o quanto Guimarães Rosa é grandioso, maravilhoso, prazeroso! E mesmo que o percurso por seu sertão seja duro, difícil, ele vale todas as idas aos dicionários e enciclopédias, pois o cenário e as histórias que Rosa cria só neologismos para mostrar!

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